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por Lula Bonfim
Estado reforça racismo religioso histórico ao associar rituais de candomblé a satanismo
Polícia Civil do DF enviou imagens de suposto ritual | Foto: Divulgação

Em perseguição ao baiano Lázaro Barbosa, de 32 anos, nascido em Barra do Mendes e suspeito da chacina que vitimou uma família em Ceilândia, a Polícia Civil do Distrito Federal (PC-DF) teria incorrido em racismo religioso ao associar algumas fotos de um assentamento de candomblé com rituais satânicos. Essa é a opinião de especialistas consultados pelo Bahia Notícias sobre o fato, que gerou polêmica nas redes sociais nesta quarta-feira (16).

 

 

A PC-DF já tinha declarado, na segunda-feira (14), para o portal G1, que Lázaro era satanista, sem explicar exatamente o que apontava para essa definição, apenas dizendo que foram encontrados indícios de que o suspeito participa desse tipo de ritual.

 

Na manhã desta quarta-feira (16), o órgão afirmou que uma das vítimas foi assassinada por Lázaro em um "ritual satânico". Como provas disso, a PC-DF publicou fotos que seriam de objetos utilizados em cerimônias demoníacas, encontrados perto de um riacho e também no imóvel em que morava a mãe do suspeito, no interior de Goiás.

 

Ao publicar as imagens nas redes sociais, o Bahia Notícias foi alertado por diversos leitores de que muitos dos objetos não tinham relação com rituais satânicos, mas sim com assentamentos do candomblé. Para o advogado e professor de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Samuel Vida, a Polícia Civil se precipitou ao fazer a associação entre as religiões de matrizes africanas e o satanismo.

 

“Algumas das fotos remetem a alguns elementos da ritualística e da simbologia das religiosidades de matrizes africanas. Se de fato foram encontradas na casa da mãe dele, pode ser um indicativo de que a mãe de Lázaro tem alguma conexão religiosa com esse campo. O que não implica que ele tenha. Não dá para imediatamente estender essa relação e ele”, disse o advogado, que também é ogã de Xangô em um terreiro de candomblé de Salvador.

 

Ainda segundo Samuel Vida, as oferendas encontradas na beira de um riacho próximo ao local em que teria ocorrido um dos assassinatos podem não ter qualquer relação com o crime, visto que esses locais são considerados sagrados pelo candomblé e seria natural encontrar esses objetos nas proximidades.

 

“Riachos e cachoeiras são locais tradicionais de oferenda praticados pelo campo religioso de matriz africana. Portanto, o fato de serem encontradas lá, nesse local, evidências do culto não pode ser associado imediatamente a Lázaro. Provavelmente, em qualquer riacho ou cachoeira em locais onde exista a prática do candomblé, você vai encontrar pratos, velas, evidências de oferendas que nada têm a ver com sacrifício humano ou práticas criminosas. Então pode ser uma evidência muito frágil”, afirmou.

 

Para o professor de Direito da UFBA, ainda que Lázaro tenha uma relação com umbanda ou candomblé, isso não autoriza ninguém a conectar a prática delituosa dele com a religiosidade de matrizes africanas.

 

“Até porque, quando um padre é acusado de pedofilia, ninguém vai dizer que a religião católica cultua a pedofilia ou incentiva seus sacerdotes a praticarem. E olhe que isso acontece em casos numerosos! E nem por isso se permite essa associação, porque seria leviana. É evidente que qualquer religião pode ter pessoas criminosas ou pessoas adoecidas mentalmente que pratiquem crimes”, apontou.

 

O historiador e fundador do Coletivo de Entidades Negras (CEN) Marcos Resende também criticou a associação feita entre candomblé e satanismo realizada pela Polícia do DF. Para ele, as polícias brasileiras são redutos tradicionais de reprodução do racismo religioso no país.

 

“Existe uma prática antiga, que ainda se consolida em alguns nichos da Polícia, de que tudo que é do candomblé é tratado como ritual satânico. Mas, no candomblé, nós não acreditamos sequer em satanás. Eles chamam de ritual satânico ou de 'magia negra'. Inclusive, isso não combina, não tem ligação com o que nós somos. Mas é fruto do histórico do nosso país transformar tudo que é do candomblé em algo negativo. Tudo que é de negro, né?”, lamentou Resende.

 

“O que eu acredito que aconteceu aí é justamente mais uma ação do racismo que se estabelece ao longo da história do nosso país, com relação à negritude e às práticas do povo negro. E que demonstram, de novo, que uma parte do que acontece nas decisões adotadas, por alguns policiais e também pelo sistema de justiça, é baseado nesse campo do racismo estrutural, que olha o corpo negro como um corpo em crime. Ou a religião do negro como uma religião de pecado ou de algo negativo”, finalizou o historiador.

 

A CONSTRUÇÃO DO RACISMO

Samuel Vida avalia que o racismo religioso no Brasil tem três grandes motores: a origem no período colonial, com a associação feita pela Igreja Católica; a ampliação do problema com as teses científicas racistas do início do século XX; e o momento atual, com o avanço das organizações neopentecostais a partir dos anos 1980.

 

“Durante o período colonial e imperial, a Igreja Católica sempre desenvolveu práticas de hostilização e desqualificação dessas manifestações religiosas, atribuindo a elas um descrédito, predicados negativos baseados na teologia cristã. Então, associar as entidades divinas das religiões de matrizes africanas a demônio se originam remotamente desse tipo de postura”, analisou o professor.

 

Depois, já na República, no início do século XX, a perseguição às religiões de matrizes africanas ganhou uma máscara científica, com base na tese do criminoso nato, do cientista italiano Cesare Lombroso.

 

“Aqui no Brasil, Lombroso teve um grande seguidor que foi Nina Rodrigues, que reproduz essas teses, junto com sua escola, seus discípulos, sobretudo na Bahia, mas também no Rio de Janeiro. Ele produz uma leitura antropológica que associa as religiões de matrizes africanas a doença mental, a práticas degenerativas, a manifestações que estariam na fronteira da criminalidade”, explicou o advogado.

 

Durante todo esse tempo, o estado manteve-se atuante como reprodutor do racismo religioso, especialmente com a atuação das polícias. O delegado Pedro Gordilho, mais conhecido como Pedrito, ficou famoso em Salvador, na década de 1920, por fechar terreiros de candomblé, confiscar objetos religiosos e prender sacerdotisas afro-brasileiras.

 

“O Estado brasileiro cumpriu um papel decisivo, reforçando essa ideia da criminalização, associando práticas delituosas aos ritos religiosos de matrizes africanas. Até 1976, os terreiros, para praticar qualquer rito público, dependiam de autorização policial. Essa norma foi revogada durante o governo de Roberto Santos, a partir da mobilização do povo de santo”, opinou Samuel.

 

Alguns dos materiais religiosos apreendidos por Pedrito nos anos 1920 estiveram, até o final da década de 1980, no Museu do Crime, do Departamento de Polícia Técnica (DPT) da Bahia, quando foram recuperados pela atuação de organizações do movimento negro, em conjunto com o Ministério Público.

 

O terceiro motor, segundo Samuel Vida, se inicia nos anos 1980, que coincide com a expansão das religiões neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que assumiu um discurso agressivo de demonização das religiões de matrizes africanas desde o início.

 

“O bispo da Universal, Edir Macedo, é autor de um livro de ampla circulação chamado ‘Orixás: Deuses ou Demônios’. Nós chegamos a questionar a circulação desse livro no Supremo Tribunal Federal, porque a liberdade de expressão não deveria comportar discurso de ódio”, criticou o advogado.

 

O PAPEL DA IMPRENSA

Perguntado sobre qual seria o papel da imprensa na construção e na desconstrução do racismo religioso, o professor Samuel Vida afirmou que o jornalismo pode ser muito útil pela disseminação de informações qualificadas, devidamente ponderadas e pesquisadas, diferentemente do que já foi feito pelos jornais do passado. 

 

“Ao longo do tempo, nós vamos ter dois papéis cumpridos pela imprensa. No primeiro momento, a imprensa foi aliada da repressão. Se a gente pesquisar os jornais do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, nós vamos encontrar os órgãos de imprensa alinhados com o discurso da Igreja Católica e do Estado, cobrando medidas repressivas e divulgando de forma sensacionalista prisões de lideranças negras”, relatou o ogã de Xangô.

 

“No segundo momento, nós vamos ter o papel destacado de um jornalista, um intelectual negro, que é o Edson Carneiro. A imprensa vai cobrir o Congresso Afro-Brasileiro, realizado na Bahia, de uma forma bem mais respeitosa, dando voz, oportunizando que lideranças religiosas, antropólogos e sociólogos desmistificassem o preconceito”, continuou.

 

Samuel defende a necessidade de se ouvir as pessoas do candomblé e das demais religiões de matrizes africana antes da divulgação de informações que podem atingir os praticantes da doutrina. Por outro lado, apesar disso, ele não espera que a imprensa defenda sua religiosidade.

 

“Nossa expectativa é que a imprensa se mantenha no campo de quem informa. Não tem que tomar partido, nem promover. A imprensa não tem dever nenhum de nos promover, até porque o candomblé não é uma religião de proselitismo. Mas a imprensa tem o dever de informar de maneira isenta, fundamentada, pesquisada e garantindo oportunidade de manifestação das pessoas”, finalizou o professor.

Fonte:Bahia Notícias
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