O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou nesta quinta-feira (8) uma série de decretos para diminuir a violência armada no país, semanas depois que dois ataques a tiros consecutivos deixaram 18 mortos e empurraram a questão da legislação sobre armas para o primeiro plano de um governo que enfrenta crises múltiplas.
Biden também deve anunciar sua intenção de nomear David Chipman, um defensor do controle de armas, para liderar o Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, o organismo federal responsável pela investigação e prevenção de infrações federais que envolvam uso, fabricação e posse ilegal de armas nos EUA. O escritório não tem um diretor permanente desde 2015.
As medidas vêm no momento em que Biden está sob pressão da ala progressista do Partido Democrata para lidar com a violência armada e o controle de armas no país. Tais medidas devem enfrentar resistência entre legisladores republicanos e em estados governados pelo Partido Republicano, que devem recorrer das medidas na Justiça Federal e até na Suprema Corte dos EUA.
Nos Estados Unidos, o direito ao porte individual de armas é garantido por uma interpretação da Constituição americana. Na Segunda Emenda, que entrou em vigor em 1789, o texto diz que “uma bem regulamentada milícia sendo necessária para a segurança de um estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido”.
Há décadas, o país discute se o “direito constitucional” é referente aos indivíduos ou ao Estado.
Os EUA têm o maior número de armas do mundo: 393,3 milhões, estima a organização Small Arms Survey. Isso supera a população do país, de 325 milhões. O país enfrenta quase 40 mil mortes violentas anuais. Os americanos são 4,4% da população mundial, mas possuem 42% das armas existentes.
O direito à posse de arma a ser mantida em casa é garantido em nível federal, e normas estaduais definem quem pode portá-la livremente nas ruas e como as armas podem ser compradas – em muitos estados, elas podem ser compradas até em supermercados ou lojas de rua.
O presidente americano deixou claro que forçar uma legislação bloqueando a oposição republicana não é viável no momento. A larga maioria dos legisladores republicanos é contrária a qualquer tipo de controle de armas, assim como a base eleitoral do partido.
As autoridades reiteraram na quarta-feira que as propostas que o presidente planejava revelar com Merrick Garland, o Secretário de Justiça, eram “apenas um começo” e que Biden continuaria a pedir ao Congresso que tomasse medidas. Nesta quinta-feira, o Departamento de Justiça anunciará três iniciativas de combate à violência armada.
Uma das regras previstas para ser anunciada hoje ajudaria a impedir a proliferação das chamadas “armas fantasmas” – kits que permitem que uma arma seja montada a partir de peças.
Os funcionários da Casa Branca não disseram se o governo acabaria por tentar classificar as “armas fantasmas” como armas de fogo. Afirmaram apenas que o departamento estava tentando impedir os criminosos de comprar kits contendo todos os componentes e instruções para construir uma.
Uma segunda regra deixaria claro que, quando um braço estabilizador é vendido e transforma uma pistola em um rifle de cano curto, essa arma está sujeita aos requisitos da Lei Nacional de Armas de Fogo.
O atirador em Boulder, Colorado, usou uma pistola com uma cinta de braço, tornando-a mais estável e precisa, disseram as autoridades.
Finalmente, o Departamento de Justiça também publicará legislação chamada de “bandeira vermelha” para os estados. A medida permitiria que policiais e familiares apresentassem uma petição a um tribunal para remover temporariamente as armas de fogo de pessoas que possam representar perigo para si mesmas ou outras pessoas.
Embora Biden não possa aprovar uma legislação nacional deste tipo sem o Congresso, as autoridades disseram que o objetivo da orientação era tornar mais fácil para os estados que desejam adotá-la agora. O departamento também planeja divulgar um relatório abrangente sobre o tráfico de armas de fogo, o que não fazia desde 2000.
Biden acrescentou em seu plano de empregos enviado ao Congresso uma estimativa de investimento de 5 bilhões de dólares ao longo de oito anos para apoiar programas de intervenção na comunidade baseados em evidências. As autoridades não disseram se planejam tentar usar esses recursos para aumentar o orçamento do Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, uma medida que os defensores do controle de armas têm pedido.
Como o Congresso dificilmente aprovará qualquer legislação sobre armas, a Casa Branca ressaltou a importância das ações executivas como um ponto de partida mais realista para cumprir as promessas de campanha de Biden para acabar com a violência armada.
Susan Rice, diretora do Conselho de Política Doméstica, atuou como pessoa de referência do governo nas próximas ações executivas. Ainda assim, grupos de controle de armas que apoiaram a candidatura de Biden criticaram o presidente por não tornar a legislação sobre armas uma prioridade, como ele havia prometido durante a campanha.
Para outros, a decisão de Biden de seguir em frente com seu ambicioso plano de empregos e infraestrutura – mesmo depois de dois ataques a tiros em massa no país – representou uma abordagem mais pragmática de um presidente lidando com várias crises e com a oposição republicana às medidas de controle de armas.
A Câmara aprovou dois projetos de lei de controle de armas no mês passado, mas eles estão definhando no Senado em face do limite de 60 votos necessários para a aprovação da maioria das legislações, que requer o apoio de pelo menos dez republicanos.
Na quarta-feira, as autoridades que previram os primeiros movimentos de Biden para conter a violência armada enfatizaram que eram apenas um “conjunto inicial de ações”, reduzindo as expectativas de iniciativas mais substanciais ou mais específicas, observando que Garland é procurador-geral há menos de um mês.
– Essas ações executivas tão necessárias começarão a salvar vidas imediatamente, e nosso exército de quase seis milhões de apoiadores espera apoiar o presidente Biden enquanto ele exorta o Senado a seguir sua liderança e agir – disse Shannon Watts, fundadora do grupo de defesa do controle de armas Moms Demand Action.
Excesso de armas
De 1966 a 2012, 31% dos autores de assassinatos em massa no mundo eram americanos, segundo estudo de Adam Lankord, professor da Universidade do Alabama.
Ajustando-se às populações, apenas o Iêmen tem um índice maior de assassinatos em massa entre países com mais de 10 milhões de habitantes. E o Iêmen é o país que tem a segunda taxa mais alta de armas do mundo, depois dos Estados Unidos.
Em todo o mundo, concluiu Lankford, a taxa de posse de armas de um país está ligada ao número de assassinatos em massa. Eles são mais consequências do acesso de uma sociedade a armas que de seu nível básico de violência.
Além de usarem o direito à posse e porte de armas que estaria inscrito na Segunda Emenda da Constituição do país, críticos do controle de armas apontam para um estudo de 2016, segundo o qual, de 2000 a 2014, o número de mortes em assassinatos em massa nos EUA foi de 1,5 por milhão de pessoas.
Na Suíça, o índice foi de 1,7; na Finlândia, de 3,4, o que segundo eles, sugere que os assassinatos em massa nos EUA não são tão comuns.
*Estadão