Além de impedir viagens de turismo e negócios, o fechamento das fronteiras de vários países devido à Covid-19 teve um efeito mais dramático: dificultou a fuga de vítimas de guerras e perseguição em todo o mundo.
A pandemia, porém, não foi capaz de impedir que o número de pessoas forçadas a deixar suas casas batesse recorde pelo nono ano consecutivo: foram 82,4 milhões de deslocados à força em 2020, segundo um novo relatório lançado nesta sexta-feira (18) pelo Acnur (comissariado da ONU para refugiados).
“A pandemia reduziu as possibilidades de movimentação, mas não encerrou as guerras, os conflitos, apesar dos pedidos de cessar-fogo do secretário-geral [da ONU, António Guterres]”, diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil. “Em 2012, eram 45 milhões de pessoas. Agora já atingimos 82 milhões. O relatório aponta que a tendência de alta se mantém, infelizmente. Já não nos perguntamos se chegaremos aos 100 milhões, mas quando chegaremos.”
O impacto da crise sanitária pode ser notado nos dados de 2020. O aumento principal foi entre os deslocados internos, ou seja, pessoas que são forçadas a se mudar para outras regiões do próprio país. Foram 48 milhões, contra 45,7 milhões em 2019. Entre os refugiados —que buscam proteção em outros países—, o crescimento foi pequeno, de 26 milhões para 26,4 milhões.
No total, o aumento de 2019 para 2020, de 3,6%, foi de 1,5 milhão a menos do que o previsto caso 2020 não tivesse tido a pandemia.
Enquanto isso, o número de pedidos de refúgio caiu quase pela metade: de 2,3 milhões para 1,3 milhão, outro reflexo das dificuldades de movimentação no ano. E o número dos que conseguiram também caiu, de mais de 950 mil para 765 mil.
“As medidas para conter a Covid-19 tiveram impacto direto no funcionamento dos sistemas de refúgio em todo o mundo. O fechamento das fronteiras e as restrições de movimentos estão tornando mais difícil para as pessoas escaparem de guerras e da perseguição em busca de segurança”, diz o relatório. “Esse cenário levou muitos países a adaptarem seus procedimentos de asilo, adotando registros remotos, exames médicos e quarentena na fronteira.”
Em maio do ano passado, 164 países estavam com as fronteiras fechadas, e 99 deles não abriram nenhuma exceção para a entrada de refugiados. Em dezembro, muitos já haviam aberto, mas 63 países ainda vetavam entrada para todos, inclusive quem busca proteção internacional.
O Acnur recomenda que os governos adotem medidas que permitam a entrada de quem precisa de refúgio sem colocar em risco a saúde pública. Uganda, por exemplo, aceitou milhares de pessoas da vizinha República Democrática do Congo, exigindo deles quarentena ao entrar.
“Os países têm autoridade e o direito de fechar as fronteiras para controle sanitário, mas é possível flexibilizar a fronteira com medidas simples: testagem em massa, isolamento na entrada, reforço da higienização nos locais de transferência”, diz Godinho.
A crise sanitária também afetou o número de retornos e reassentamentos em um terceiro país. Apenas 251 mil refugiados conseguiram voltar para seu país de origem em 2020, o terceiro menor número na última década.
Com isso, cerca de 15,7 milhões terminaram o ano em situação de refúgio prolongado (por mais de cinco anos). Entre eles, os que deixaram seus países há muitos anos, como afegãos e iranianos, ou mais recentemente, como os do Sudão do Sul que moram no Quênia ou em Uganda.
E de 290 mil a 340 mil crianças já nasceram em situação de refúgio no último ano, segundo estimativas do Acnur.
Ainda em relação às crianças, o número das que pediram asilo após viajarem sem nenhum familiar ou totalmente desacompanhadas aumentou em termos proporcionais. Foram 21 mil em 2020 (2% do total), contra 25 mil no ano anterior (1%).
Os principais países de origem e destino dos refugiados não mudaram. Oito de cada dez pessoas que buscam proteção no exterior vêm de apenas dez nações, principalmente Síria —primeira do ranking desde 2014—, Venezuela e Afeganistão.
Entre os destinos, o ranking tem Turquia (sírios) em primeiro lugar, seguido por Colômbia (venezuelanos) e Paquistão (afegãos), confirmando a tendência de buscar proteção principalmente nos países vizinhos.
No geral, as nações em desenvolvimento continuam sendo as que mais recebem refugiados —86% deles.
O Brasil é citado no relatório como um dos principais destinos para os venezuelanos, que são a segunda nacionalidade com mais pessoas que buscaram proteção fora de seus países. Foram 4 milhões até 2020, e já são 5,4 milhões contando os dados de 2021.
Ainda na América do Sul, a Colômbia é mais uma vez a campeã de deslocados internos, devido aos casos acumulados desde a década de 1980, pela violência das guerrilhas. Entre as movimentações mais recentes, países africanos, como Etiópia, Sudão, Somália e Moçambique, são citados como exemplos. Além dos conflitos e de perseguições, desastres naturais decorrentes de mudanças climáticas e a própria pandemia foram motivações para esses deslocamentos.
No Iêmen, ao menos 10 mil pessoas entre março e julho citaram o medo de contrair o coronavírus ou o impacto da pandemia sobre a economia como uma razão para se mudar para áreas menos afetadas dentro do país.
Com a pandemia piorando a situação econômica e a desigualdade em vários países —o Banco Mundial estima que até 124 milhões de pessoas tenham caído na pobreza extrema por esse motivo—, as previsões do Acnur para 2021 apontam para mais crescimento no número de refugiados.
“A magnitude das crises alimentares piorou em 2020, e conflitos prolongados, clima extremo e a crise econômica da Covid-19 exacerbaram situações preexistentes”, diz o relatório. “As previsões para 2021 são igualmente preocupantes.”