O presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Augusto Xavier da Silva, provocou a abertura de um inquérito pela PF para investigar um procurador federal que atua na própria Funai e que elaborou um parecer jurídico a favor dos indígenas.
Xavier apresentou notícia-crime à PF em Brasília contra o procurador Ciro de Lopes e Barbuda, em razão do parecer elaborado pelo servidor vinculado à AGU (Advocacia-Geral da União) e com atuação na Funai.
O presidente da Funai acusou o procurador de apologia do crime, e essa iniciativa resultou na abertura de inquérito pela PF no Distrito Federal.
O MPF (Ministério Público Federal), porém, discordou da existência do procedimento, apontou crime de constrangimento ilegal na iniciativa do presidente da Funai e disse ser necessária imediata correção pelo Judiciário. Em 8 de setembro, o MPF pediu à Justiça Federal o arquivamento do caso.
Xavier é delegado da PF e preside a Funai desde julho de 2019. Sua gestão é voltada à agenda ruralista e à proposta do presidente Jair Bolsonaro de barrar novas demarcações de terras indígenas.
Uma prática comum da presidência da Funai é provocar a PF para investigar quem é considerado oponente dessa agenda.
Já houve notícias-crime contra Sonia Guajajara, coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e contra o senador Fabiano Contarato (Rede-ES). Os dois procedimentos foram arquivados.
No caso do procurador da própria Funai, Xavier afirmou que um parecer elaborado pelo profissional contrariou recomendações técnicas e jurídicas já existentes.
Conforme acusação do presidente da Funai, reproduzida na decisão de arquivamento pelo MPF, o parecer implica apologia do crime "por defender a retomada de terras indígenas em desconformidade com as previsões legais".
O servidor elaborou um parecer dentro de um processo que trata de uma ocupação por indígenas da etnia tupinambá na Bahia.
Segundo ele, a Constituição Federal "reconheceu aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". Esses direitos prevalecem sobre direitos de posse ou propriedade, conforme o procurador federal.
A teoria do indigenato, que caracteriza esses direitos prevalecentes, se opõe inclusive à tese do marco temporal, conforme o parecer do servidor. O marco temporal é defendido por Bolsonaro e por seu governo.
A tese afirma que indígenas que não estavam em suas terras na data da promulgação da Constituição de 1988 não têm direito de reivindicar novas demarcações. O marco temporal, assim, é um limitador de novas demarcações, como deseja o governo.
A ideia não surgiu com Bolsonaro. Um parecer da AGU de 2017, aprovado pelo então presidente Michel Temer (MDB), validou o marco temporal, uma demanda antiga dos ruralistas. O critério ignora o histórico de expulsões de índios de suas terras.
O STF (Supremo Tribunal Federal) julga um processo a respeito do marco temporal, a partir de um caso específico, do povo xokleng, em Santa Catarina. O recurso que chegou à corte, contra decisão desfavorável aos indígenas, é da Funai, hoje alinhada ao que desejam os ruralistas.
O julgamento foi suspenso em 15 de setembro a partir de um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Relator do processo, o ministro Edson Fachin votou contra o marco temporal.
Fachin, em um voto de 116 páginas, usou argumento semelhante ao do procurador acusado de apologia do crime pelo presidente da Funai. Para o ministro do STF, o direito indígena à terra é fundamental e originário e precede o próprio Estado brasileiro.
Para o procurador federal contestado na PF, orientações da Funai para que não se atue judicialmente a favor de índios ocupantes de áreas tidas como particulares não têm validade jurídica.
Segundo ele, é aconselhável evitar decisões que "priorizam políticas de governo em detrimento de políticas de Estado", principalmente no atual momento, quando permanece sem decisão a discussão sobre o marco temporal no STF.
A coordenação da Funai em Itabuna (BA) aponta que 200 famílias da etnia tupinambá ocupam a área em disputa desde 2013 e não há intenção de desocupação voluntária, conforme o parecer.
"O cumprimento forçado de decisão poderá acarretar conflitos violentos, com risco à incolumidade física de indígenas, não indígenas e agentes estatais."
O procurador defendeu que a comunidade indígena deveria ser assistida pela Procuradoria Federal. "O conflito fundiário em questão envolve, de maneira direta e imediata, o exercício de direitos e interesses coletivos indígenas", afirmou.
O MPF considerou ilegal a instauração do inquérito policial para investigar o procurador federal, a partir da provocação do presidente da Funai.
O pedido feito pode ser enquadrado como abuso de autoridade e denunciação caluniosa, segundo o procurador Marcus Marcelus Gonzaga, que propôs o arquivamento do inquérito.
"O parecer limitou-se a apresentar argumentos jurídicos e a opinar pela interposição das respectivas medidas no âmbito do Poder Judiciário", afirmou o procurador. "Em nenhuma parte do referido texto colhe-se apologia à violência, ao esbulho possessório ou à invasão de terras."
O parecer é passível de concordância ou discordância, mas "não há espaço algum para cogitar-se da prática de crime ou de sua apologia no conteúdo redigido pelo procurador federal". "Entender de forma diversa é criminalizar a advocacia pública e amordaçar o discurso jurídico", afirmou Gonzaga.
Em nota, a Funai disse que não comenta "fatos que estão sob apuração em âmbito policial, o que poderia prejudicar o andamento dos trabalhos".
O órgão disse que não compactua com o ilícito, defende o interesse público e segue princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade.
"A apuração de fatos supostamente ilícitos reafirma o seu compromisso com a indisponibilidade do interesse público, tendo em vista que todos os cidadãos estão submetidos à observância da lei brasileira', disse a Funai.